• Memória de Santarém

A presente reedição atualizada de "Memória de Santarém" (904 págs.) resgata as venturas, desventuras, folguedos e agruras das populações que habitam na região do Baixo Amazonas, onde o rio Tapajós deságua no rio Amazonas. Nas entrelinhas de uma profusão de relatos, notícias e informações, “garimpadas” em papéis carunchentos, arquivos poeirentos, amarelecidas páginas de extintos jornais ou nas grotas da memória, a “vida invisível” dos legítimos donos desta terra clama por decifração. Tornar consciente essa necessidade é, provavelmente, ao lado de outras qualidades, o mérito primordial desta obra. A seguir, texto do escritor Nicodemos Sena, publicado nas orelhas do livro:

A civilização humana no Vale Amazônico, datada de mais ou menos 10 mil anos, não deixou marcas palpáveis, pirâmides e obeliscos. Povos ágrafos, como os que o espanhol Francisco de Orellana encontrou na Amazônia em 1542, deixaram vestígios sutis, quase imperceptíveis, de sua existência; a transmissão oral era praticamente o único recurso que tinham para registrar e preservar suas crenças e cosmovisão.
Nas quase mil páginas dessa “Amazoníada” intitulada Memória de Santarém, o sociólogo, escritor e jornalista de “longo curso”, Lúcio Flávio Pinto, não apenas historia episódios que marcaram o Baixo Amazonas nos séculos XIX e XX, como também recolhe, valendo-se da memória coletiva não registrada em livros, os ‘vestígios sutis’, que uma historiografia oficial provavelmente desprezaria, da existência dos povos subalternizados que habitaram a região onde o rio Tapajós deságua no Amazonas. Pois não é que este livro “fala”, e fala coisas muito importantes, paradoxalmente, também pelo que não diz?
Publicado em 2011, sob a direção editorial do jornalista Miguel Nogueira de Oliveira, e agora reeditado com atualizações, Memória de Santarém parece ser, para Lúcio Flávio Pinto (e para todos nós, amazônidas), aquilo que para Euclides da Cunha foram Os sertões, em relação ao Nordeste, e À margem da História (que, infelizmente, Euclides não chegou a concluir) em relação à Amazônia: o “livro vingador”. Vingador em relação à tibieza, inapetência, incúria, obscurantismo, boçalidade e truculência das elites amazônicas, personificadas nos representantes da oligarquia do Baixo Amazonas, cujas toscas atitudes e tresloucadas estripulias, transcritas ora em tom grave ora com ironia, num relato que transita entre o jornalismo e a sociologia, explicam bem as razões da secular estagnação econômica, social e política à que a Amazônia sempre esteve submetida, a reboque dos interesses e ditames dos governos centrais, desde a Colônia até os dias de hoje. Aliás, “colônia” é o que a Amazônia tem sido, em todos os períodos de sua história, como diz o título de outro livro fundamental para a tomada de consciência: “Amazônia, colônia do Brasil” (Violeta Loureiro).
Ao final da leitura de “Memória de Santarém” fica claro que esta obra monumental, de inegável importância não apenas para a população do Baixo Amazonas, foi escrita com a mesma paixão e senso de responsabilidade com que o sábio Nunes Pereira escreveu “Moronguêtá, um decameron indígena”, clássico da bibliografia amazônica, precioso repositório de ritos, costumes, histórias e saberes dos povos indígenas. À falta de pirâmides e outros vestígios materiais; à falta de registros escritos da vida comezinha e dos feitos heroicos dos filhos do cacique Nurandaluguaburabara, Lúcio Flávio Pinto, no silêncio capaz de furar os tímpanos de quem ama a justiça, buscou a “alma secreta do movimento histórico”, que os rituais de uma religiosidade capturada pelo sectarismo religioso e as narrativas ufanistas das elites provincianas tentam a todo custo sufocar.
A ausência dos pobres diabos, deserdados da terra, na historiografia oficial – a começar pelos “tapuios” que habitavam a zona que os brancos apelidaram de “Aldeia”, e, por fim, as gerações de tapuios que os sucederam – é algo tão gritante, tão escandaloso e revoltante que, paradoxalmente, à revelia de seus algozes, esse apagamento quase absoluto torna-os presentes. Por exemplo, nas façanhas do povo cabano, que eu, escondido atrás da porta, ouvia a minha avó cochichar, temerosa, com outros adultos, como se o assunto tivesse algo de pornográfico ou criminoso. Ou na figura socialmente insignificante, mas simbolicamente poderosa do pedreiro Alírio de Castro Filho, vulgo “Banana”, que, sem Partido ou ideologia, movido unicamente pelo instinto de classe, tombou mortalmente ferido ao lado do prefeito cassado e caçado, Elias Pinto, numa fatídica tarde de 1968, atingido pelas pitombas de aço disparadas por agentes da oligarquia política local, contestada pelo voto nessa ocasião, e que até hoje, invariavelmente, dita as regras e aplica o porrete em Santarém. Como bucha e alvo de canhão, é dessa maneira que os pobres da terra (caboclos, indígenas, quilombolas, ribeirinhos) entram na História. Nas entrelinhas de uma profusão de relatos, notícias e informações, “garimpadas” em papéis carunchentos, arquivos poeirentos, amarelecidas páginas de extintos jornais ou nas grotas da memória, a “vida invisível” dos legítimos donos desta terra clama por decifração. Tornar consciente essa necessidade é, provavelmente, ao lado de outras qualidades, o mérito primordial desta obra.

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Autor Lúcio Flávio Pinto
Editora LETRASELVAGEM
Idioma PORTUGUÊS
Encadernação Brochura
Páginas 904
Ano de edição 2025
Número de edição 2

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