Entre os discursos de Luciano de Samósata (século II d.C.), Das Narrativas Verdadeiras sobressai quer na invenção de múltiplos monstros, quer na proliferação de admiráveis cenários. Narrador-navegador, Luciano conta nos dois livros de prosa de Narrativas os périplos a bordo do seu veleiro não só pelos confins da Terra, como também pelo que a excede, notabilizadas pelas expedições que ora sobem ao domínio dos céus (Lua, Cidade-lamparina), ora descem ao reino dos mortos (Ilha dos Bem-aventurados, Ilha dos Ímpios).
O propósito do discurso revela-se no proêmio: uma narração que lida com o que “de nenhum modo é e, por princípio, nem mesmo pode vir a ser” (I, 4). Instala-se, com ela, um dos paradoxos que permeia todo o texto: apesar de abolir de antemão o ser, os episódios se sucedem uns aos outros, forjando seres e devires. É a instância instável do falso que ganha corpo, animando prodigiosamente as cenas. Esvaziadas do pesadume do ser, as palavras nem recebem demarcações nítidas, nem buscam refúgio em algum porto seguro, pelo que, errantes ao modo da tripulação do protagonista, elas avançam à margem das coisas conhecidas no rastro do sem-fim dos assombros encenados. Tanto é assim, que, na figuração, as ilhas podem se apresentar sob qualquer matéria: ilha de cortiça e ilha de queijo, uma avistada e outra visitada pelos nautas. O mesmo vale para os animais, abertos a toda sorte de amplificações e combinações, que arrasam a régua rígida das espécies do naturalista. Não menos extraordinárias se mostram as peripécias no rio de vinho, no mar de leite, ou ainda nas lutas lúdicas lançadas contra armadas bestiais.
Cruzando comédia com paradoxos, homens com bichos e plantas, o Das Narrativas Verdadeiras opera parodicamente, valendo-se dos livros de viagens modelares do gênero, incontornáveis desde a Odisseia de Homero. Traz o livro as marcas de mais referências letradas, pois o heteróclito relato luciânico vira do avesso a paideia grega há muito sedimentada pela obra de poetas, historiadores, filósofos, oradores, como indicam os ensaios que complementam a presente edição bilíngue.
A intensidade desta narração fantástica, que ora se vai ler, mede-se também pela fortuna crítica. De Rabelais (Pantagruel e Gargântua) a Raspe (As Aventuras do Barão de Münchausen), de More (Utopia) a Montesquieu (História Verdadeira), passando-se por Campanella (A Cidade do Sol), Cyrano de Bergerac (A História Cômica dos Estados e Impérios da Lua e do Sol), Swift (As Viagens de Gulliver), Voltaire (Micrômegas) e muitos outros, não foram, pois, poucos os autores que desdobraram as errâncias irônicas de Luciano.