Sarcástico, mordaz, ferino, instigante... Os adjetivos não dão conta do argentino Néstor Perlongher, que nunca imaginou passar à posteridade como um dos maiores poetas em língua espanhola da segunda metade do XX. Sua poesia neobarroca é estudada em todo o continente hispano-americano.Conheci-o em 1980, num pequeno apartamento de Palermo, quando militava na Frente Homossexual Argentina, ainda em plena ditadura militar. Tinha o maior orgulho em afirmar que nascera no bairro proletário de Avellaneda, subúrbio de Buenos Aires.
Chegou ao Brasil em 1980, fugindo da asfixia do final da ditadura argentina e vislumbrando a possibilidade de trilhar novos caminhos, tanto literários como políticos. Ele não foi um imigrante, mas um estrangeiro nos Trópicos. Foi assim que, logo ingressou na pós-graduação em Antropologia da Unicamp, onde fez o mestrado e se tornou professor. Seu pensamento, inspirado em Foucault, Deleuze e Guattari, o despertou para o mundo da errância gay. Itinerâncias urbanas noturnas, que culminaram com a publicação de O negócio do michê, assim como o mundo das saunas, são partes dessa militância. Chegou a participar brevemente do grupo Somos em São Paulo, de identidade homossexual; a bíblia mensal era a revista Lampião da Esquina, dirigida por Aguinaldo Silva, vendida em bancas, até que uma delas foi incendiada.
Do ponto de vista literário, encontrou em São Paulo o locus amenus para continuar desenvolvendo o neobarroco, sendo Haroldo de Campos um de seus grandes interlocutores, que lhe dedicou um belo poema póstumo, “Réquiem”, aqui reproduzido. Do barroco ao neobarroso, de nítida inspiração lezamiana, trilhou um caminho que culminou com Caribe transplatino: poesia neobarroca cubana e rioplatense, rica antologia bilíngue, traduzida por Josely Vianna Baptista, dedicada a Haroldo e publicada por esta editora em 1991, ou seja, um ano antes de seu falecimento. Percebemos que suas fontes inspiradoras foram o barroco espanhol: Góngora, Quevedo, Santa Teresa e Sor Juana Inés de la Cruz. Do Caribe, as vozes de Lezama Lima, Severo Sarduy e José Kozer, de quem foi interlocutor. São eles os “precursores” de uma poética, no sentido dado por Borges em “Kafka e seus precursores”, em que o presente literário modifica de forma retroativa a tradição. Uma verdadeira constelação, que ao ser reconfigurada por Perlongher cria uma nova tradição poética. O barro é sem dúvida uma alusão lamacenta às águas turvas do Rio da Prata.
Em Buenos Aires publicou apenas um livro de poemas, Austria-Hungría. Em São Paulo, produziu mais cinco: Alambres, Hule, Parque Lezama, Águas aéreas e Chorreo de las iluminaciones, que terminariam por consagrá-lo.Em 1989, durante uma viagem a Paris para fazer doutorado, descobriu que estava com Aids. Isso modificou radicalmente sua poesia, voltando-se para um intenso misticismo de raízes profundamente brasileiras. Ele se integrou ao grupo do Santo Daime, viajou várias vezes ao Acre e escreveu hinos para os rituais com ayahuasca. Nesse mesmo período, foi agraciado com a Bolsa Guggenheim, reconhecimento internacional de seu talento, com um projeto de Auto Sacramental que não chegou a concluir.
Em 1994, foi publicado Lamê, pela editora da Unicamp, uma alentada antologia poética bilíngue, organizada por Roberto Echavarren, seu testamenteiro literário, novamente com tradução de Josely Vianna Baptista. Anos mais tarde, a Seix Barral, de Buenos Aires, lançou Poemas completos. Infelizmente Perlongher não viveu o suficiente para ver essas publicações consagratórias.
Em seu último livro de poesia, Chorreo de las iluminaciones (O jorro das iluminações, 1992), enfrentando corajosamente as Parcas, encontramos o estribilho “Ahora que me estoy muriendo”, e no poema “El mal de sí”, que abre com o verso “Detente, muerte”, ouvimos ressonâncias de Sor Juana, “Detente, sombra de mi bien esquivo”.O volume que hoje se publica privilegia a aura mística, com textos inéditos, ou pouco conhecidos no Brasil, e é uma homenagem ao autor, quando se cumprem, em 26 de novembro, trinta anos de seu falecimento.
Jorge Schwartz