SINOPSE
[LIVRO EM CORES] Seminal e pioneiro, Afrografias da Memória registra a coexistência religiosa e cultural que marca tão fortemente a identidade, a memória e a cultura popular brasileiras, revelando a riqueza das tradições trazidas pelos africanos e a história social e cultural de resistência e sobrevivência das populações negras, durante e após a escravidão, ao incorporar na cultura dominante sua voz, cores e forma de sociabilidade, criando seus próprios rituais e suas próprias formas de pertencimento e acolhimento comunitário. Ancestralidade e comunidade, o terreiro do Jatobá explode em encanto nesse clássico da oralitura, que volta às prateleiras reafirmando o papel imanente e fundamental do negro para a cultura brasileira.
QUARTA-CAPA
Afrografias da Memória é uma das obras máximas da oralitura entre nós. Contando a história do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Minas Gerais, Leda Maria Martins, doutora em Literatura Comparada e rainha de Nossa Senhora das Mercês, enlaça a palavra escrita com as vozes, cores e as melodias do Reinado, uma manifestação cultural de matriz banto que, por vias das performances rituais, transcria estilos, simbologia, metafísica, coreografia, inúmeros saberes, valores e cosmovisão africanos. Inscrevendo pelo rito a memória das diásporas negras, a tradição se enovela nas espirais do tempo, enfrenta as opressões e se faz patrimônio imaterial do povo brasileiro. Comemorando os 25 anos de seu lançamento, esta segunda edição, revista e atualizada pela autora, testemunha a vitalidade do Reinado, da memória, do livro e da festa, no contorno poético das palavras que encantam suas páginas e na evocação do corpo negro que canta e dança e, assim, performa e ressignifica sua própria história.
ORELHA
[por J. Guinsburg]
As vias pelas quais o negro foi imprimindo o seu ethos na vida cultural brasileira não são, sem dúvida, em sua parte principal e talvez mais significativa, as que cruzavam os espaços sociais onde se celebravam os grandes fastos da cultura luso-ocidental e em que se consagravam os valores hierárquicos de seu código alto. Nem os retratos oficiais, nem as academias culteranas, nem os rapsodos de plantão, nem os escribas caligráficos guardaram registros dos roteiros pelos quais esse ouro da expressão e da vivência do povo afro, garimpado na escravidão e na alienação, transitou das minas, por exemplo, para as minas. Discriminado, marginalizado, ficou obliterado no anonimato das senzalas, dos quilombos e dos reinados do Rosário. E é justamente aí que Leda Martins foi buscá-lo para trazer à luz, em Afrografias da Memória, seu trans-seminante e translumbrante legado que, indeclinável, continua pulsante nas formas mais intrínsecas do feitio deste Brasil de tantos Brasis.
Reprojetando e reconfigurando no universo textual do livro a textualidade oral afro-brasileira, focalizada nos Reinos Negros e nas congadas das Minas Gerais, a escritora recupera as grafias da oralitura em transcriações das inscrições ágrafas preservadas pelos congadeiros, em seus ritos e celebrações. Para este reescrever, que é uma leitura de entrega e vigília, se, de um lado, num primeiro passo, deixa-se possuir pelas vozes do sortilégio e da exaltação anímica, de outro, e com inteira deliberação, distancia-se do encantamento, assumindo o lugar epistemológico de sua condição autoral que grava sapientemente, no tracejado dos caracteres, os ecos reverberados pelas estrias da memória no transcrito da rememoração.
LEDA MARIA MARTINS
Rainha de Nossa Senhora das Mercês do Reinado de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, em Belo Horizonte. Poeta, ensaísta, dramaturga e professora. Doutora em Letras e Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e mestre em Artes pela Indiana University, nos Estados Unidos, com pós-doutorado em Performances Studies pela New York University, Tisch School of the Arts, e em Performance e Ritos pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Foi professora da Universidade Federal de Minas Gerais, da Universidade Federal de Ouro Preto – Ufop e professora visitante da Tisch, além de diretora de Ação Cultural da UFMG (de março de 2014 a março de 2018). Atua nas áreas de artes cênicas, literatura comparada, performances e estudos culturais. Publicou vários livros, capítulos de livros e de ensaios no Brasil e no exterior, com destaque para Cantiga de Amares (ed. independente, 1983); O Moderno Teatro de Qorpo-Santo (Editora UFMG/Ufop, 1991); A Cena em Sombras (Perspectiva, 1995); coeditora da Callalloo (v. 18, n. 4, Johns Hopkins, 1995, Special Issue: African Brazilian Literature); Afrografias da Memória (Perspectiva/Mazza, 1997 e 2021); Os Dias Anônimos (Sette Letras, 1999); Performances do Tempo Espiralar, Poéticas do Corpo-Tela (Cobogó, 2021). Em 2017, foi criado o prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras de Belo Horizonte, patrocinado pelo Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais – BDMG.
COLEÇÃO
A coleção Perspectivas reúne textos importantes, em pesquisa extensa na abrangência do assunto. Contempla biografias, história, arte, antropologia e literatura.
DA CAPA
Imagem da capa: Mastros com os estandartes em procissão. Foto de Vera Godoy, 2017.
Os ritos e procissões do Reinado do Rosário no Jatobá explodem em cores e alegria. Essas festas símbolos da potência, resistência e criação da cultura afro-brasileira.
TRECHOS
No Sábado de Aleluia, quando em geral os Rosários são abertos, até fins de outubro, quando então os reinos se recolhem e se fecham, os tambores cantam em Minas e guiam pelas ruelas e pelos asfaltos, pelas capelas e igrejas do Rosário, pelos quintais, as nações do congado, que, com seus reis e rainhas, seus capitães e marinheiros, rematizam a África em terras d´Américas. Como estiletes autografando as abissais desfronteiras e deslimites simbólico-geográficos dessas serras gerais, congos, moçambiques, marujos, catupés, candombes, vilões, caboclos, na sua variedade rítmica, cromática e coreográ¬ca, performam cânticos, gestos, ritmos e falas, como aedos e griôs que imbricam a história e a memória, posfaciando o discurso cultural brasileiro com os prefácios africanos.
A palavra oral, assim, realiza-se como linguagem, conhecimento e fruição porque alia, em sua dicção e veridicção, a música, o gesto, a dança, o canto, e porque exige propriedade e adequação em sua execução, pois para “que a palavra adquira sua função dinâmica, deve ser dita de maneira e em contextos determinados”. Assim, nos congados, cada situação e momento rituais exigem propriedade da linguagem, expressa nos cantares: há cantos de estrada, cantos para puxar bandeira, cantos para levantar mastro, cantos para saudar, cumprimentar, invocar, cantos para atravessar portas e encruzilhadas, e muitos outros.
A encruzilhada, locus tangencial, é aqui assinalada como instância simbólica e metonímica, da qual se processam vias diversas de elaborações discursivas, motivadas pelos próprios discursos que a coabitam. Da esfera do rito e, portanto, da performance, é lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, texto e traduções, confuências e alterações, infuências e divergências, fusões e rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade, origem e disseminação. [...].
Nesse movimento, a própria noção de centro se dissemina, na medida em que se desloca, ou melhor, é deslocada pela improvisação rítmica e melódica. Diz Elisson: “porque o jazz encontra seu ponto vital numa infindável improvisação sobre materiais tradicionais, o jazzista deve perder sua identidade, mesmo quando a encontra”. Assim como o jazzista, metonímia das culturas negras nas Américas, retece os ritmos milenares, transcriando-os dialeticamente numa relação dinâmica e prospectiva, essa cultura, em seus variados modos de asserção, funda-se dialogicamente, em relação aos arquivos das tradições africanas, europeias e indígenas, nos jogos de linguagem, intertextuais e interculturais, que performa.