Este livro revela um novo Thiago Lia Fook. Para quem conheceu o poeta de poesia natimorta e versos sobreviventes (2010), subversos (2016) e logorréia (2017), chegou a hora de puxar um banquinho e ouvir umas histórias. Antigamente era melhor chega atiçando a brasa da prosa, porque é isso o que o autor comete – a boa prosa – dando um presente aos seus leitores de antes e depois.Se poesia é linguagem, o poeta ensinou isso ao prosador. Neste livro, a linguagem pulsa na pesquisa dos falares, nas expressões reeditadas e nos afetos expressos em trejeitos dos personagens, o que nos aproxima tão intensamente do texto que é possível sentir o cheiro do café ou da naftalina e o vento do alpendre soprando no rosto. O retrato é realista – e isso pode promover tanto a identificação quanto a repulsa do leitor.Contador de casos, Lia Fook traz a marca da imigração no sobrenome, mas trata é da Paraíba – seus lugares, sua gente, sua cultura. E não fica no pitoresco nem se prende ao passado, como seus personagens, que lamentam poderes perdidos. Estes servem como pretexto para tratar do humano, o que o autor faz invocando do contemporâneo ao canônico. Alguém viu Valesca Popozuda em Triunfo? Ou Machado de Assis em Tchau, querido?O retrato é realista, mas a prosa é de ficção. Autor e leitor precisam firmar este acordo sobre a obra para fechar o triângulo mágico. Aqui, Manoel de Barros nos salva cantando que “Noventa por cento do que escrevo é invenção / só dez por cento é mentira”. E Ariano Suassuna, que se autodeclarava “mentiroso” ao contar suas histórias, lembra a todos que é de licença poética que vive a literatura.Se a carapuça estiver em cima da mesa ao fim de um conto, ela fala mais do leitor que do autor. Thiago Lia Fook escreve sobre tudo e todos sem pudores de revelar inconveniências ou fazer contraponto. Os personagens se deixam ver nus e crus, mas o autor os entrelaça com leveza e bom humor para narrar alguns dos temas mais controversos da convivência humana. O texto chega a fazer cócegas por dentro do cérebro do leitor.E assim aparecem os conflitos da classe média de algumas cidades da Paraíba, que poderiam ser qualquer recanto do Brasil profundo. Nisso, aproxima-se de Machado, de quem podemos perceber releituras não apenas no já citado Tchau, querido, mas também em Medalhinha milagrosa, onde o pai está morto e é a mãe quem passa lições inconfundivelmente brasileiras de como dar um jeitinho entre o público e o privado, com um toque de fé.Outro aspecto do livro merece destaque: ele é uma celebração da arte de contar histórias, à medida que investiga as formas por meios das quais isso se dá na vida real. O sonho do pardal soa como uma fábula ao avesso ou um exercício de autoanálise. A Sua Excelência o Juiz é a petição de um advogado, Boletim de ocorrência poderia ter saído das páginas de um inquérito policial, A revolução de 89 é uma entrevista, e por aí vai.Aliás, basta pensar em Assombração, o conto que abre a coletânea. Noite de apagão, celulares descarregados. Que fazem os personagens? Como nas antigas, propõe Márcia, sentam-se em torno do fogo e contam histórias em meio aos sons fantasmagóricos da escuridão. E isso mostra que, se os personagens falam de violências e injustiças antigas de que se beneficiavam, o autor injeta estilhaços linguísticos neste “antigamente”.Enfim, para começar sua leitura, tenha por perto um disco brega na vitrola. Pode até ser música que fale do amor entre o filho e sua mãezinha protetora, ou a novíssima Alô, porteiro. Em um mundo louco e injusto, habitado por pobres diabos, os desejos mais absurdos encontram sublimação até mesmo em um inocente jogo de tabuleiro. E tudo isso merece boa trilha sonora. Vamos ouvir umas histórias?Nara Limeira Santos